22 de março de 2011

brincar aos médicos - tentativa de uma história de vida

| |

Há-de vir o dia em que alguém, tenha oito ou oitenta, seja homem ou mulher, miserável ou feliz, não goste de ouvir uma boa história de encantar. Era uma vez e viveram felizes para sempre. Mesmo que minta, torça o nariz, gosto lá dessas foleiradas! Gosta sim senhor. Dos dramas já ninguém quer saber. Bastam os filmes que deixam qualquer ser com mais estrogénio que testosterona a soluçar. Hoje não é um dia de sorte, a história que aqui se vai escrever é triste, e mesmo que não quiséssemos que assim fosse, a protagonista não nos deu hipótese.

Brilhava o sol de Agosto de 1949 quando Ascensão veio a esta terra. Envolta em sangue, vísceras e panos foi posta ao colo da sua mãe, estafada de um parto caseiro à boa maneira de antigamente, sem direito a facilitismos. E ali estava, no centro das atenções, pronta para tudo aquilo que a todos é suposto vir. Era uma criança feliz. Não, não era rica, era feliz. Classe média? Repetimos, feliz. As correrias e brincadeiras pelos campos de Trancoso foram-lhe suficientes até ter doze anos de idade e decidir que estava na altura de algo mais. Sonhava ser professora, ensinar, dar algo ao mundo. A única coisa que o mundo lhe deu foi um lugar numa casa como doméstica em Lisboa, mas convenhamos, esta prenda mundial até podia ter sido pior.

Chegámos a 1968 e continuava a nossa protagonista de rabo alçadado a esfregar o chão, com uma irmã ali ao lado que não a deixava largar a mão às origens. Que a família muito importa e sempre importou, sempre se soube. Assim sendo, não imaginou mal nenhum ir para Paris, outra irmã por lá havia… E assim chegou a nossa jovem Ascensão de mala às costas à Cidade da Luz. Tudo novo, tudo diferente (que este pé atrás de Portugal já vem de há muito)! Habituada a trabalhar como se outro propósito não houvesse nesta vida, procurar emprego não pôde não ser a sua principal prioridade. Ainda assim, teve os seus requisitos – não queria trabalhar com mulheres. Essas obras do diabo, por muito inofensivas que sejam sozinhas, esquecem toda a fachada de jóia de moça a que são obrigadas quando se juntam e dão asas à má língua e ao pecado, e a nossa Ascensão sempre soube bem disso. Para amigo, escolhe-se quem se quer. Preferências tais levaram-na até uma jovem empregadora, à procura de ajuda para a sua loja de antiguidades, onde apenas tinha um funcionário. Ideal.

Os anos passam, a vida vive-se, o trabalho faz-se, e o amor encontra-se. Ascensão apaixonou-se por um português também por Paris emigrado, dado a conhecer pela irmã, com quem rapidamente casou. Sol de pouca dura. Seria de esperar que a dita chama da paixão durasse alguns anos. Pelos vistos isso é moda de agora. Antigamente a coisa desvanecia mais rápido, e num ápice a nossa já não tão jovem protagonista começou a sentir a dor na pele. Nem a vinda dos seus milagres de vida a aliviou. Antes pelo contrário, os dois gémeos que nos seus lençóis conceberam, se ainda com amor ou já apenas carnalmente ninguém saberá, só serviram para que o marido se deleitasse com uma sua outra irmã que chegara também a terras francas.

Foram quatro os anos que Ascensão soube ter um marido que se deitava na sua cama vindo da de outra. E que outra. E que dor. E que fardo. Ao marido fingiu perdoar, por necessidade. Que raio de mãe iria deixar os seus filhos sem pai só por este a trair e lhe levantar a mão? À irmã perdoou-a por desejo da mãe no leito da morte, que tanto sofreu por ver duas das suas meninas em disputa. Mas já pelas terras se dizia, homem esquece e não perdoa, mulher perdoa mas não esquece.

Pareça isto dramático o suficiente para um desgosto, Ascensão nunca se deitou abaixo. Poupem-nos, que com esta conversa toda não se requer mais que dois dedos de testa para perceber que há aqui mais força que na comum mulher. Até ao dia em que, com trinta e cinco anos, o papão do cancro lhe espreitou por debaixo da cama. Mama direita. O pânico era muito e a esperança pouca. Sentiu a fraqueza de ser menos mulher, de perder a beleza, de perder a capacidade de ser mãe. Ascensão não viu maneira de justificar um azar destes sem ser pelo trauma da traição, logo ela que se aguentou ali que nem um Dom Afonso Henriques. Mas Deus é justo, segundo dizem, e fez a sua justiça (com um quê de ajuda do sistema de saúde francês).

Os Agostos foram vindo, e a idade também, e quase com cinquenta Verões às costas a nossa Ascensão voltou aos ares lusitanos, trazendo consigo marido e filhos. Os ditos meninos, já homens feitos, não escaparam ao quase certeiro ciclo sem fim e foram cair nas maravilhas do trabalhar, sair de casa e constituir família. Leia-se, portanto, seguir com a vida. Exactamente aquilo que a nossa protagonista queria fazer com a sua, não fosse Deus decidir pregar das suas. Então minha querida, acha que eu fui um excelente Salvador que a livrou de um cancro? Tome lá outro que eu não quero que lhe falte nada. Mama esquerda. O trauma foi diferente, menor, o perigo era outro. Quer a nossa Ascensão tente ou não disfarçar as lágrimas, um tumor é sempre um tumor, seja o primeiro ou o segundo, não é desporto em que se ganhe prática. Julgava-se então ser esta uma perfeita altura do senhor seu marido se chegar à frente, ser um homem, redimir-se dos seus erros. Mas não, qual seria a piada disso para a nossa história? Limitou-se a chegar a casa, após um agradável dia de radioterapia, e a pedir o divórcio. Havia por ali coisa mais nova e interessante no radar, e só isso lhe importou. E nossa protagonista com isso, Deus lhes dê mas é o que eles merecem, que é pouco. Só é pena não ter caído o merecido no cesto que mais nos convinha, mas desta vez já pudémos atirar com as culpas à ciência. Pois, esquecemo-nos aqui de mencionar, numa tentativa de aligeirarmos a já suficiente infelicidade e o pesar desta história, mas até este ponto, já sete entes com sangue do seu sangue haviam sido diagnosticados, e eventualmente ido de esta para melhor, com cancro... mas talvez seja escusado.

Seis longos anos se passaram, e estando de novo saudável e solteira, Ascensão decidiu voltar a ser mulher. Não, ser mulher não é voltar a sair à rua à pesca de um novo amor. Que horror. Quer lá uma pessoa outra trabalheira daquelas, mais feliz se está sozinha que mal acompanhada. Voltar a ser mulher é voltar a ter mamas. Não há que ter vergonha de dizê-lo, mamas, assim mesmo, e tê-las é ser mulher, digam o que disserem. O medo de uma cirurgia foi suplantado por esta vontade, e assim se fez.

Tudo estava bem e a postos para se viver feliz para sempre. Filhos, netos, amigas, a nossa já querida Ascensão superou mais desafios que Hércules e outro qualquer herói à escolha juntos, e estava prontíssima para disfrutar da paz que essa mesma superação lhe deveria trazer. Sessenta e um anos não são nada caros leitores, e ainda muitos lhe faltavam para ir sorrindo com pão e água à mesa, segundo ditam as nossas estatísticas. Mas a nossa protagonista já começa a ganhar fama de contrariar probabilidades, ou não? Entrava assim o mês de Novembro do ano passado àquele em que nos encontramos quando a meio da noite surge sangue na cama onde Ascensão dorme. Aflita, levou as mãos às partes baixas. Doíam-lhe e sentiu-as ensaguentadas, juntamente com a barriga. Não perdeu tempo em ir a correr para o médico. Hajam urgências que sejam de facto urgentes. Os exames foram pedidos e os resultados obtidos. Cancro no ovário, metastizado pelo peritoneu. Soa grave para os leigos na matéria, e é mesmo, dizem aqueles que mais percebem.

Passam-se meses e chegamos ao hoje. A nossa Ascensão vive à espera de morrer. Não se ilude, nem conseguiria mesmo que o quisesse. O que não significa que não tente ser feliz. Ou melhor, não ser tão infeliz. Há um irmão que a acompanha no caminho para as cinco tábuas que não consegue visitar, há amigas longe que lhe dão a mão pelo telefone, há netos para ver crescer, filhos para ver envelhecer. Espera somente. Pergunta a Deus porquê a si. Desta ninguém Te perdoa. Bonito serviço Senhor, bonito serviço.

3 comentários:

Casimiro disse...

Muito bom.

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Obrigada :)

GOD disse...

Os seus escritos têm aquilo que falta a muitas das literaturas que por aí vegetam. Algo me diz que alguma coisa irá acontecer ao seu futuro com as palavras. Oxalá não me engane. Não se esconda porque tem muito para dar.