4 de novembro de 2009

a aula

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São 8 e meia da manhã e eu estou na faculdade. Sabe tão bem dizer "faculdade", é pena que dizê-la seja a única coisa que tem piada aqui. Estou em Medicina Clínica. Soa extremamente profissional, mas limita-se a 3 horas obrigatórias de filosofia médica. Aprender a dizer a um pobre coitado qualquer que vai morrer, que tem isto ou que tem aquilo.

O exmo professor começou agora a ler uma carta de despedida, que é como quem diz de suicídio, que um senhor deixou à mulher. Matou-se porque despistou o carro da empresa. Era pobre e não tinha licenciatura, mas ao que consta trabalhou tanto que conseguiu um cargo. Daqueles em que dão um carro. E ele espatifou-o. Matou-se porque acha uma desonra estragar um bem que não lhe pertence. E porque o seguro de vida lhe vai assegurar a família. O exmo professor já acabou de ler a carta, e começam as perguntas. Lembram-me as aulas de português de 12º ano, em que de repente toda a gente parecia perceber de Fernando Pessoa, atirando os mais alternativos e profundos bitaites a quem tenta ensinar o inensinável. A maior parte dos jovens doutores opinou que a situação é absurda, ninguém se mata por um carro. Outros, jovens doutoras maioritariamente, defendem o senhor. Que tinha muitos valores e uma grande dor interior. Há ainda quem se limite a dizer palavras que soam bem mas que não querem, no fundo, dizer nada. E há os que se calam a aula toda, como eu, nem boa nem má figura. Só uma croma ao computador. As opiniões continuam a escorrer e eu só vejo o computador. É uma falsa salvação a estas aulas, a estas e a quase todas, porque me distrai. Mas distrai-me com nada. São três horas a batalhar nas teclas sem propósito algum. Vou vendo, navegando pelas ondas da cativante Internet.

O exercício mudou de opinar para encarar o professor como se ele fosse o senhor Eduardo, o suicída. Está um paspalho a tentar convencê-lo a não suicidar-se, e toda a gente se ri. Estamos todos a rir do suicído, hahahaha. Quão macabro? Acredito piamente que este curso só me vai tornar ainda mais insensível. O professor é o que se ri com mais regozijo. É médico, claro.

Já são 9 e meia. Apetece-me participar mas tenho vergonha. É mesmo assim, sou cheia de vergonha mas nunca ninguém dá conta. Apetece-me pegar no microfone e falar com o senhor Eduardo. Senhor Eduardo, já pensou em trocar de papel com a sua mulher? Tem a mínima noção do impacto que o suicídio da sua mulher teria na sua vida? O homem ia dizer ah e tal faço isto por eles. É o que está a responder a todos, nem um professor de jeito me arranjam para esta merda.

O som do burburinho conversador desconcentra-me da atenção que vou dando aos vídeos de The Xx no youtube. Estão a discutir um novo caso. Um senhor fumador tem cancro no pulmão. Discutem-se todas as maneiras possíveis de como o médico deverá dar a notícia. E toda a gente se ri. A situação começa a assustar-me, os risos começam a parecer vindos de bonecas de porcelana no escuro que vão ganhando dentes afiados e sangue a sair das órbitas.. ou não. Não porque agora mandaram levantar-nos a todos, e fazer pares. Acalmei-me. Juntei-me a uma das poucas raparigas que conheço no meio disto. O exercício consiste em tocar com as pontas dos dedos nas da outra pessoa, e ir movendo as mãos. Uma vez controla um, noutra o outro, e por fim as duas desorganizadas. Não foi giro e fez-me doer os braços. Por estranho que pareça a melhor foi ser controlada. Não sei o que isso quer dizer, e também não perguntei. Ele está a explicar e continuo sem perceber. Afinal o exerício era só para sentir o toque do outro. Porque é que eu escolhi uma gaja então? Tudo para aprendermos a tocar nos doentes. Eu não vou tocar em doente nenhum. Só para o abrir. Não vou abraçar ninguém quando lhe disser que tem cancro. Não me compete, e tenho a certeza que o doente não ia gostar. Eu vou ser o seu carrasco, porque há de me querer abraçar? Não me apetece pensar nestes assuntos profundos. São 10 e meia e há intervalo, vou comer.

Uma jovem doutora na fila perguntou-me se eu lhe estava a passar à frente. Estava, mas respondi-lhe que não e sorri amareladamente. Queria o meu folhado misto, na mão, imediatamente. Estava, como sempre, a morrer de fome.

Volto e o cromo ao meu lado está a ouvir Nirvana, fico tão feliz. Este curso não prima pela beleza dos seus estudantes, mas o gosto musical não é mau de todo. Os esquesitóides ouvem sempre coisas como deve de ser, vá se lá saber porquê.

Entretanto, está a acontecer-me a coisa mais fascinante de sempre em toda a história da minha rudimentar escrita. A rapariga ao meu lado está a mandar uma mensagem a alguém sobre mim. A mensagem diz que tem "Uma rapariga ao lado que está a descrever a aula, e que o texto está lindo". Só pode estar a gozar, ou não? Há que compreender, não é comum ver-se alguém a descrever uma aula num computador, e eu faria exactamente o mesmo, ou pior. Está há já uns tempos a tentar citar o primeiro parágrafo, mas vai muito lenta na escrita. Já enviou, recebeu resposta, e enviou de novo. Não consegui ler. Queria saber se gostou de facto. Se tivesse muita lata até lhe pedia o mail para lhe enviar o texto, ou dava-lhe o Dessérios. Sou muito vaidosa na merda que escrevo.

Acho que nunca vou saber. Não que interesse muito, se interessasse arranjaria maneira. Arranjo sempre.

São 11 e meia e a aula acabou, vou-me embora.

27 comentários:

Rosy disse...

Tinha que ser o folhado misto!

A parte das bonecas de porcelana lembrou.me algo:
"Gosto de carne humana hihi"

Lembras.te desta famosa frase?
Estranhamente isto não te soa a cirurgia...?

Iúri disse...

Desgraçados dos desafortunados que te terão como tratadora...

Vais escrever um post-it e deixá-lo na recepção do consultório para lhe ser entregue quando chegar para a consulta:

"Tem cancro e está em fase terminal.
Não agendaremos a próxima consulta por motivos óbvios.

Mafalda de Oliveira"

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Hahaha i'm the evil doctor.

Anónimo disse...

there's a difference between evil and bad.

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Estou no 1º mês no 1º ano e já me dizer que vou ser má médica! Que seguidores adoráveis..

Anónimo disse...

ora, se calhar é pelos comentários do género "Eu não vou tocar em doente nenhum. Só para o abrir. Não vou abraçar ninguém quando lhe disser que tem cancro. Não me compete...". Ser médico não é abrir pessoas, e qualquer estudante de medicina, quer esteja no 1º mês do 1º ano ou no último mês do 6º, deveria saber isso. vendo pelo lado positivo, ainda há muito tempo para aprender a ter empatia!

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Deves ser daqueles que tem cancro e chora ao colo do médico não? Uma pessoa que descobre uma coisa destas quer mas é que o médico o deixe em paz. Eu vou servir para o tentar tratar, e se não conseguir dar-lhe a notícia com respeito e pena. Não é preciso abraçar alguém para isso, abraçar só serve para ultrapassar os limites que devem existir entre médico e doente.

Margarida disse...

Só para te lembrar que cada caso é um caso...

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Claro que sim. Mas o que eu escrevi aqui foi apenas brincadeira filosófica no meio de uma aula, não o meu valor como médica para o resto da vida. Agradecia que parassem com os comentários em anónimo porque não vou andar para aqui a discutir se nem sei com quem. Já que é tão chegado para frente para mandar vir ao menos que escreva o nome.

Susana disse...

Olá! Vim ter ao teu blog e não resisti a deixar um pequeno comentário :) Eu acho que é muito interessante a maneira como descreveste esta aula que decorreu hoje... é bom observar outros pontos de vista, outras perspectivas acerca de um acontecimento que foi mais ou menos igual para tantos alunos (para além de que um relato em pleno directo tem o seu encanto ^^)

Penso que o que algumas pessoas sentiram ao ler este post, eu incluída, é a maneira um pouco abrupta como abordas o contacto com os doentes, o "eu não vou tocar em doente nenhum". Não querendo julgar ninguém e estando longe de imaginar como irá ser a realidade da minha vida profissional, considero que estes são casos que se decidem individualmente, consoante as informações não-verbais que recebemos dos doentes - uns afastar-se-ão de nós e irão considerar-nos como uma espécie de carrascos, como tu bem dizes, enquanto que outros procurarão apoio emocional no médico, por vezes seu único confidente... é por isso que este assunto do contacto com doentes e o relatar más notícias me é tão importante :)

Peço desculpa pelo comprimento do comentário, apeteceu-me desabafar um pouquinho ^^ Obrigada por teres escrito este post e também parabéns pelo header, está lindo!

De uma colega tua :) **

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Obrigada Susana! De facto é sempre bom ouvir uma opinião diferente da nossa, se não nem tinha piada. Eu sou menos insensível do que parece na escrita, se não nem tinha referido como me incomodou estarem a rir-se do suicídio..

A ver se me dizes quem és na faculdade para eu te dizer um olá :)

Susana disse...

Claro! :D De facto, certos assuntos como os da aula de hoje serem mencionados com uma certa leviandade também me impressiona deveras...

Eu não tenho a certeza, mas penso que te sentas ao pé de mim ^^ A ver se consigo apurar ao certo e depois podemos falar um pouquinho :)

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Tenho sempre o Vaio branco nas aulas, pode ser que ajude a identificar haha.

Magui disse...

eu bem te estava a ver... LOL
acho mal não teres descrevido a bela da entrevista médica! Indecente! Uma falha muito grave! Foi no momento em que a rapariga estava a escrever a mensagem.

Bem, só tenho algo a dizer...
P. aberta - "Como te sentes em relação a tudo isto....?"

R. Empática - "Deve ser difícil estar nessa situação..."

Um beijinho*

Maria Guilhermina

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Eu vejo-te sempre nestas aulas mas é porque te atiras sempre ao palco para actuares! Noto uma clara indecisão de carreiras entre medicina e actriz hahaha

Anónimo disse...

Por causa deste texto, algo me diz que eras a mais "esquesitóide" dessa sala inteira.

Anónimo disse...

Pá depois de ler isto só penso: que ser execrável e sem personalidade juridica! metes me nojo!

Unknown disse...

A minha Mafalda nunca me falha... Que texto formidável... O trecho em que escreve que só irá tocar neles para os abrir deixou-me agarrado ao estômago a rir.. fabuloso..
Beijinho
Mário Morgado

Anónimo disse...

Mesmo passado tanto tempo continuas igual ao que eras!

Talvez essas aulas te encinem a ser mais humana

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Escreve-se enSinem.

Anónimo disse...

Olá! Depois de ter lido algumas frases do teu blog durante a aula não resisti a vir ver o texto na íntegra. Acho de facto muito interessante a maneira como escreves, diferente no mínimo, acho que nunca esperaria ouvir de um estudante de medicina coisas do género "Eu não vou tocar em doente nenhum. Só para o abrir.". E não te querendo julgar, confesso que me faz alguma confusão a frieza com que falas da faculdade, das disciplinas, das pessoas...
Ainda assim gostava de falar contigo pessoalmente,

a rapariga que estava ao teu lado.

Mafalda Correia de Oliveira disse...

É mais maneira de falar que outra coisa.. não sou um monstro de insensibilidade haha. Olha já agora hás-de me dizer o nome do livro de bioquímica que tinhas, pareceu-me óptimo.. lol

Mafalda Correia de Oliveira disse...

Estes comentários todos deixam-me chocada. Será que não sabem que a realidade da escrita é diferente da realidade.. da realidade? É a mesma coisa que acharem que o Saramago é um violador por ter descrito no ensaio sobre a cegueira a cena dos cegos a violarem mal e porcamente toda a mulher que lá estava. Por amor de deus.

Anónimo disse...

até se compara ao saramago...

Rúben Nogueira disse...

Visão um tanto ou quanto estranha. Não quero de forma alguma criticar ou opinar sobre o que disseste, até porque cada um tem a sua opinião, e essa raramente a tento mudar... Cada um é como cada qual, pensa como quer e toma as decisões que bem entende. Talvez por ser um pouco mais sensível a este tipo de questões me faça mais afronta essa tua visão... E Magui, cuide do seu Português! - acho mal não teres "descrevido" - Amanhã logo te digo ahah .

Beijinho de um colega *

Anónimo disse...

miúda...há coisas que gosto em ti e coisas que não gosto! as primeiras são que és apagada e que gostas de ser controlada! ÓPTIMO! As segundas são que andas sempre com fome (ou és gorda ou anorética, o que não é muito bonito...) e não vês que tens colegas extremamente belos tipo EU topas?! é claro que há muita gente que acha aquelas aulas uma seca (eu também)...mas daí a gozares com pessoas que se calhar nunca falaram contigo porque tens uma grande tromba de tédio vai um grande caminho. Não te esqueças que por muito má que possas parecer há sempre alguém pior que tu... x)

Anónimo disse...

RIDICULO